Cultura

Lendas não morrem

No finalzinho de 2022, ‘nos últimos minutos do segundo tempo’, o mundo acompanhou, em profunda comoção, uma partida que ninguém gostaria de assistir. Era a partida, definitiva, do maior jogador de futebol de todos os tempos. Pela última vez, no início de 2023, o público pode ver Pelé, o Rei, em campo, cercado de familiares, amigos e fãs para uma despedida real.

No dia 2 de janeiro, enquanto um novo ano começava, os holofotes da Vila Belmiro se acendiam para receber, pela última vez, seu filho mais pródigo, que nos deixou dias antes, em 29 de dezembro de 2022.

Pelé despediu-se do Santos Futebol Clube em 1974, quando foi jogar nos Estados Unidos, pelo New York Cosmos, e dos gramados em 1977, numa partida, vejam só, entre o Cosmos e o Santos, nos Estados Unidos. O Rei disputou o primeiro tempo da partida com a camisa do Cosmos e o segundo tempo com a camisa do Santos, diante de uma plateia de autoridades, artistas e políticos mundiais. Quarenta e cinco anos depois, sob as arquibancadas que sempre lotaram para assistir aos seus espetáculos – desta vez, vazias, o Rei se despedia do mundo, com uma trilha sonora cujo repertório era composto por músicas gravadas por ele mesmo.

Mas as lendas são eternas. Então, se perdemos a presença de Edson Arantes do Nascimento, ficou o legado de Pelé no esporte, inquestionável, indelével, unânime.

Pelé atuou durante quase toda sua carreira no Santos Futebol Clube, entre 1956 e 1974, e trouxe 10 títulos estaduais e seis campeonatos nacionais para o clube, além de duas Copas Libertadores e dois Mundiais de Clubes, em 1962 e 1963. Foi no time santista que o Rei marcou seu milésimo gol, em 1969, em uma cobrança de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã. Ao todo, pelo Santos, Pelé jogou 1.116 jogos e marcou 1.091 gols.

O homem de Três Corações fazia disparar milhões de outros quando estava em campo, desde sua chegada profissional aos gramados. Foi o jogador mais novo a vencer uma Copa do Mundo de Futebol, em 1958, aos 17 anos, na Suécia. O garoto fez seis gols e foi o artilheiro do Brasil no campeonato. Nesta edição, Pelé passou a ser chamado pelos franceses de O Rei do Futebol.

O título se eternizou e muitos outros vieram com o tempo: ele é, juntamente com Neymar, o maior artilheiro da seleção brasileira e o único jogador da história a ser tricampeão mundial, nas Copas de 1958, 1962 e 1970.

Fez do Santos – o time, e de Santos – a cidade, seus lares, mas seu reinado ultrapassa fronteiras mundiais. Filho de Dondinho e pai de Edinho, o Rei, apesar de soberano, provou que a realeza está no sangue e que rei que é rei nunca perde a majestade. Mesmo após a definitiva partida.

No seu legado ainda estão a formação em Educação Física, pela Universidade Metropolitana de Santos (Unimes), onde entrou em 1970, quando já era considerado o melhor jogador do mundo; a atuação como Ministro do Esporte, no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando criou a Lei Pelé, que revolucionou a prática desportiva no país, além de inúmeros prêmios, honrarias e homenagens mundo afora.

Pelé até parou uma guerra. Um choque entre dois grupos étnicos da Nigéria, entre 1967 e 1970, causou a Guerra de Biafra, considerada um dos eventos mais dramáticos da África, com cerca de dois milhões de mortos. Em 1969, a equipe do Santos Futebol Clube, com Pelé, foi para a África realizar uma turnê com jogos amistosos, incluindo a Nigéria, a convite do governo local.

Para que o time pudesse chegar ao Estádio Ogbe com segurança, o governo nigeriano decretou um cessar-fogo. Nessa partida, o Santos venceu por 2 a 1, e com a volta da equipe santista para o Brasil, a guerra continuou.

Na turnê, o Santos realizou nove jogos, com cinco vitórias, três empates e uma derrota. Foram marcados 19 gols, e Pelé foi o artilheiro com oito gols feitos.

A partida final

Pelé nos deixou no dia 29 de dezembro de 2022, aos 82 anos, após semanas internado no Hospital Israelita Albert Einstein para tratar da progressão de um câncer de cólon. Em 2021, o Rei já havia passado por uma cirurgia e sessões de quimioterapia para tratar da doença, porém, foram detectadas metástases no intestino, pulmão e fígado, e a doença passou a não responder ao tratamento.

O mundo inteiro parou para assistir à partida, incrédulo, apesar de saber que o atleta vinha driblando a doença há tempos. Com a notícia da morte do maior jogador de futebol de todos os tempos, homenagens foram feitas em todos os cantos do Planeta.

As homenagens, aliás, começaram em novembro, pela Seleção Brasileira de Futebol, durante a Copa do Mundo, no Catar, quando Pelé já estava hospitalizado.

O Rei jogou até os minutos finais de 2022, fazendo jus ao título de realeza, mas a despedida só começou a ser realizada no ano seguinte. A pedidos da família, a cerimônia de velório ocorreu somente nos dias 2 e 3 de janeiro de 2023, na sua Vila Belmiro, onde Pelé começou – e eterizou – a sua história.

Um dia antes, 1º de janeiro de 2023, o Brasil empossava o seu novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em terceiro mandato, enquanto acompanhava os preparativos para a despedida real no campo conhecido mundialmente, o Estádio Urbano Caldeira, em respeitoso silêncio.

A Vila recebeu o Rei pela última vez

Dias antes da despedida oficial, os santistas – os da cidade e os do time – notaram uma movimentação atípica no estádio: uma estrutura estava sendo montada no campo, o que começou a gerar especulações sobre a possível partida do Rei. Aquela que ninguém gostaria de assistir.

Drones começaram a sobrevoar a Vila Belmiro, captando imagens, que logo passaram a se espalhar, deixando fãs, imprensa e curiosos em alerta. Dias depois, a notícia se confirmou, em meio às festividades de final de ano e a posse de um novo presidente.

“A família não queria transformar a partida de Pelé em um grande evento, a ideia era que fosse uma despedida respeitosa, que naturalmente chamaria a atenção de todo o mundo”, explica Sergio Denys Rodrigues de Jesus, coordenador de operações e segurança da Vila Belmiro, que liderou os preparativos para o velório.

Fabio Maradei, gerente de comunicação do Santos Futebol Clube, explica que a família resolveu fazer o velório no estádio Urbano Caldeira por três motivos: “primeiro, pelo simbolismo da Vila Belmiro, segundo para que pudéssemos dar um suporte na questão estrutural, para receber as pessoas, e terceiro, para cuidarmos do relacionamento com a imprensa do mundo todo”.

Toda a equipe da Vila foi mobilizada desde antes do Natal, no dia 22 de dezembro, conforme lembra Maradei, para cuidar dos preparativos. Foram mais de dez reuniões com a família de Pelé para alinhar os preparativos, com muito cuidado. “Nós não tínhamos ideia da proporção que seria, porque era a primeira vez que isso aconteceria, envolvendo uma celebridade mundial. Por isso, todos os departamentos foram acionados e trabalhamos incessantemente, para que tudo ocorresse como a família do Pelé desejava”.

Prefeitura de Santos, Polícia Militar, CET e muitos outros parceiros foram acionados para que houvesse organização, segurança e profissionalismo, já que o velório receberia autoridades, celebridades e imprensa do mundo todo.

Mais de 1200 jornalistas de veículos de 32 países estiveram presentes para fazer a cobertura da despedida do Rei, incluindo correspondentes internacionais. O Santos preparou uma estrutura de entrevistas dentro do Memorial das Conquistas, o museu do time, captando depoimentos de todas as autoridades presentes, para municiar a imprensa.

O presidente do Brasil, Lula; o presidente da FIFA, Gianni Infantino; o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez; além de jogadores, autoridades, políticos e celebridades estiveram presentes na despedida, no estádio que nunca antes havia reunido tantos veículos de comunicação e autoridades.

Sergio conta que foi montada uma enorme estrutura operacional não só pela quantidade de pessoas que estariam presentes e pela importância em nível mundial, mas porque seriam pessoas de culturas diferentes, com particularidades. “Foi preciso muito cuidado com tudo, por isso mobilizamos cerca de 600 profissionais ao todo”.

A polícia militar acionou mais de dois mil policiais, desde a descida da Serra, em diversos pontos das rodovias Imigrantes e Anchieta, na chegada à Baixada Santista, em Cubatão, Praia Grande, São Vicente e em toda a cidade de Santos, para que ninguém fosse pego de surpresa ou houvesse qualquer imprevisto.

“Criamos uma estrutura completa de alimentação no refeitório, com mais de duas mil refeições servidas, principalmente para a polícia militar que nos deu um suporte fundamental; uma sala de gestão de crises; um sistema de atendimento 24 horas por dia, no qual havia um número de celular disponível para cada tipo de demanda diferente; articulação com alguns helipontos da cidade e com os aeroportos de São Paulo, para receberem jatos particulares, tudo isso com muita antecedência”, conta o coordenador.

Juntamente da CET e da Polícia Militar foi montada uma rota de bloqueios nas ruas no entorno do estádio. Uma escola próxima serviu de base para credenciamento da imprensa, para evitar filas nas portas da Vila e uma equipe de recepcionistas com experiência em estádios foi contratada para dinamizar a entrada das pessoas. Além disso, mais de 40 banheiros químicos foram instalados na rua para atender ao público.

Sergio conta que o vestiário de arbitragem do estádio foi preparado com uma estrutura trazida pela Memorial Necrópole Ecumênica, cemitério onde Pelé foi sepultado, para a preparação e conservação do corpo do Rei até ser apresentado ao público. O terceiro andar do estádio foi preparado e isolado para que a família do Pelé pudesse descansar, com discrição.

“Outro desafio foi organizar a recepção de autoridades e celebridades”, lembra o coordenador. “Então, foi montada no Memorial das Conquistas uma recepção para as celebridades, que não precisavam de identificação, o que facilitava o acesso ao estádio. As autoridades, que nem sempre são reconhecidas, entravam pelo portão 10, no Salão de Mármore, mediante identificação e credenciamento, com agilidade”.

“Não queríamos que se formassem filas, para não caracterizar um evento, conforme solicitação dos familiares, principalmente porque havia transmissões pelas tevês do mundo todo”, reitera Sergio.

Todas as pessoas que acessaram a tenda onde estava o corpo do Rei foram autorizadas pela família – a ideia era que não extrapolasse 200 pessoas simultaneamente. Mais adiante, no gramado, foi instalada uma tenda maior, para que celebridades e autoridades pudessem ficar mais à vontade, sem causar alvoroço onde o corpo estava sendo velado.

“Para não ficar um ambiente completamente silencioso, deixamos as músicas gravadas por Pelé tocando em som ambiente em todo o estádio”, lembra Maradei.

Mais de 230 mil pessoas passaram pela Vila Belmiro para se despedirem do Rei Pelé, entre segunda-feira, 2, e terça, 3 de janeiro. Segundo a organização, não houve incidentes e tudo correu sob controle, tendo em vista a grandiosidade do momento.

Passaram-se sete dias desde o anúncio da família sobre a possibilidade da morte de Edson Arantes do Nascimento até o dia em que, de fato, o apito final soou, anunciando a partida do jogador. “Nesse tempo pudemos planejar, repensar e aprimorar tudo para que a despedida fosse à altura do Rei”, lembra Sergio.

Ao final do velório, o corpo de Pelé deixou a Vila Belmiro, sob som da corneta, e seguiu em cortejo, passando pela casa da mãe do Rei, dona Celeste. Escoltado por policiais nitidamente emocionados, o caminhão do corpo de bombeiros precisou seguir o lento ritmo de quase quatro horas ditado pelo mar de pessoas em comoção e pelas torcidas organizadas que acompanharam todo o trajeto até a Memorial Necrópole Ecumênica, onde está agora o mausoléu do Rei.

Roteiro Pelé é opção de rota turística em Santos

Com a morte do Rei, o Roteiro Pelé, que já existia em Santos, passou por ajustes e está disponível para turistas e visitantes que desejam conhecer lugares da cidade que fazem parte da trajetória de Pelé.

A rota inclui o Museu Pelé; o Memorial das Conquistas do Santos Futebol Clube; O Estádio Urbano Caldeira (Vila Belmiro); o barbeiro do Pelé, Didi; a Faculdade de Educação Física de Santos, onde ele se formou; a estátua dele em frente à Padaria Santista; a antiga casa dos pais do Rei; a casa de Pepe Gordo, responsável pelos negócios de Pelé; a Pensão da Dona Jorgina, que hospedou vários jogadores, inclusive Pelé; a Calçada da Fama do Cine Roxy; o Centro de Treinamento Rei Pelé; o Centro de Memória Esportiva de Vaney, além do novíssimo Monumento Camisa 10, na entrada da cidade; o Mural Coração Santista, do Kobra, no Blue Med Convention Center e o Mausoléu onde ele está sepultado.

O roteiro é comercializado por agências de turismo receptivo da cidade e pode ser adaptado de acordo com interesse e tempo dos grupos. Em 2023, esta é uma das rotas que o Santos Convention & Visitors Bureau irá promover por todo o Brasil e exterior, em parceria com a Secretaria de Empreendedorismo, Economia Criativa e Turismo de Santos.